“Eu sofri abuso, fui violentada e hoje quero desabafar”
Não é fácil. Para falar a verdade, nunca foi fácil. Eu me lembro de quando era bem pequena e não sabia o significado das coisas. Ele me pedia para por a mão em uma parte do corpo que eu não tinha e para segurar bem forte. Ele também me pedia que sentasse no colo dele e fica rebolando comigo em cima ou, então, pedia que eu dançasse naquela posição. Eu nunca entendia porque isso sempre acontecia e acontecia quando estávamos sozinhos.
Com o tempo, ele foi me pedindo que não falasse nada com ninguém sobre o que acontecia quando ficávamos sós. Junto com o silêncio, foi me pedindo para tirar a roupa. Foi pegando onde minha mãe nunca me deixava mostrar a ninguém. Ele colocava o dedo lá dentro e, se doesse, eu não podia falar nada, tinha que ficar quieta senão ele dizia que eu estaria sendo má filha e que, assim, não ia querer mais saber de mim. Eu não poderia perder meu pai. Quando a gente não estava só, ele era o melhor pai do mundo porque dava tudo o que eu queria e me defendia quando brigavam comigo.
Só que as coisas não ficaram somente assim. Quando eu fiz 12 anos, meus seios começaram a surgir e uns pelinhos também começaram a aparecer. Ele começava a querer colocar outra coisa dentro de uma parte de mim que estava acostumada com seus dedos, eu tinha medo e, por isso, contei para minha mãe. Ela disse que eu estava mentindo, brigou comigo e me castigou. A partir desse dia, eu comecei a ser violentada por ele pelo fato de ter falado pra minha mãe e por ficar me negando a fazer o que ele queria.
Eu comecei a ficar mais velha e querer privacidade, mas ele me seguia por onde eu ia. Eu nunca ficava sozinha. Parecia um filme de terror. Minha cabeça doía e eu tinha pesadelos à noite. Arquitetava fugir. Não o via mais como o pai perfeito. Na verdade, descobri que ele nunca foi perfeito. Com o tempo, fui lendo e percebendo que isso não era algo comum. A internet me alertou que isso era um abuso, era crime e minha mãe, que nunca dizia nada, parecia saber de tudo e captar meus medos.
Eu nunca podia namorar, não podia sair com os amigos à noite. Enfim, descobri que era uma prisioneira. Quer saber, ainda sou. Não sei o que fazer. Passei em uma faculdade e fui morar longe de casa, ele não queria, mas eu decidi que o único curso que eu gostava não tinha em minha cidade – isso foi uma estratégia para eu me distanciar. Quando ele me ligar, não atendo. Para me sustentar, comecei a vender docinhos e artesanato na faculdade. Assim, não precisaria pedir a ele. Sem que ele e minha família saibam, eu namoro. Mas não consigo me envolver sexualmente com ninguém ainda, fico travada. Estou começando a terapia no núcleo de psicologia onde estudo e espero mudar e conseguir vencer meus traumas.
Quem mais possui uma história de vida como essa? Como hoje é primeiro de abril, eu resolvi contar essa mentira sobre mim. Para ser sincera, eu nunca sofri abuso algum. Meu pai sempre me respeitou demais e sempre foi pai no sentido correto da palavra. Mas sabe por que eu resolvi mentir assim? Porque apesar de não dizer respeito a minha história, ela representa a de mulheres pelo mundo afora.
Não é difícil encontrar mulheres que passaram por situações parecidas, eu já me deparei com várias que tenham histórias similares. E, então, qual deve ser o nosso posicionamento enquanto mãe, vítimas da violência, irmã, prima ou amiga? Como perceber que essas coisas acontecem? Temos que tentar resolver essas questões e discutirmos mais este assunto. O maior caso de vítimas deste tipo de abuso, infelizmente, é de familiares. Sempre é o pai ou um tio quem agride, logo é algo emergencial e que requer mais cuidado.
O primeiro de abril do Pudor Nenhum, este ano, não é uma brincadeira, mas algo sério demais para que possamos levar adiante e refletirmos. Se você quiser conversar e desabafar, pode escrever pra mim!
Lu Rosário
Jornalista. Baiana. Leonina. Feminista preta. Apaixonada por tudo o que diz respeito a sexo e sexualidade. Palavras e fotografias são suas taras.